Bom ano 2017 com muitas leituras
João Vaz Carvalho
"(...) Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas
olha
fixamente
Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente
um aperto na boca do estômago, porque olhos como
estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou
azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento
de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou
brancos brilhantes como lascado carvão de pedra.
Veio
a esta casa não porque lhe dissessem que viesse, mas
Blimunda perguntara-lhe que nome tinha e ele respondera, não era
necessária
melhor razão.
Terminado o
auto-de-fé, varridos os restos, Blimunda retirou-se, o
padre foi com ela, e quando Blimunda chegou a casa
deixou a porta aberta para que Baltasar entrasse.
Ele
entrou e sentou-se, o padre fechou a porta e acendeu
uma candeia à última luz duma frincha, vermelha luz
do poente que chega a este alto quando já a parte
baixa da cidade escurece, ouvem-se gritar soldados nas
muralhas do castelo, fosse a ocasião outra, havia Sete -Sóis de
lembrar-se
da guerra, mas agora só tem olhos
para os olhos de Blimunda, ou para o corpo dela, que
é alto e delgado como a inglesa que acordado sonhou
no preciso dia em que desembarcou em Lisboa.
Blimunda levantou-se do mocho, acendeu o lume
na lareira, pôs sobre a trempe uma panela de sopas, e quando ela ferveu .deitou uma parte para duas tigelas
largas que serviu aos dois homens, fez tudo isto sem
falar, não tornara a abrir a boca depois que perguntou,
há quantas horas, Que nome é o seu, e apesar de o
padre ter acabado primeiro de comer, esperou que Baltasar terminasse
para se
servir da colher dele, era
como se calada estivesse respondendo a outra pergunta,
Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu
a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora
·tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que
se perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda
já tinha dito que sim antes de perguntada, Então
declaro-vos casados.
O padre Bartolomeu Lourenço esperou que Blimunda
acabasse de comer da panela as
sopas que sobejavam, deitou-lhe a bênção, com ela
cobrindo a pessoa, a comida e a colher, o regaço, o lume
na lareira, a candeia, a esteira no chão, o punho cortado de Baltasar.
Depois
saiu.
Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar.
Apenas uma vez Baltasar se levantou para pôr alguma
lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda
espevitou o morrão da candeia que estava comendo a
luz, e então, sendo tanta a claridade, pôde Sete-Sói_
dizer, Por que foi que perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu,
Porque
minha mãe o quis saber E
queria que eu o soubesse, Como sabes, se com el_
não pudeste falar, Sei que sei, não sei como sei, não_
faças perguntas a que não posso responder, faze como
fizeste, vieste e não perguntaste porquê, E agora, Se
não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para
Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica,
enquanto não fores, será sempre tempo de partires,
Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso,
Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar,
vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças
que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não
deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por
dentro, Juro
que nunca te olharei por dentro,
Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que
estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde
durmo, Comigo.
Deitaram-se.(...)"
"Memorial do Convento", de José Saramago