segunda-feira, julho 02, 2018

Descobrir leituras, no Verão

“A utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela afasta-se dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei.

                                                          Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano in ‘Las palabras andantes?’  
                                                                                         de Eduardo Galeano. publicado por Siglo XXI, 1994.



A Doçura
 (excerto)

“Anita vende a doçura em frascos. Enche-os de compota de fruta, tapa-os e cola-lhes uma etiqueta, mas, em vez de escrever compota disto ou compota daquilo, de mirtilos ou de pêssego, de marmelo ou de morango, arredonda a letra e escreve apenas Doçura. Senta-se no passeio com os frascos defronte, expostos no asfalto, junto aos pés, e não lhe faltam clientes. A compota vende-se muito bem e ninguém regressa para reclamar: quem compra julga que a doçura está toda nos olhos de Anita.
Anita vende, pois, a doçura que tem no olhar e a doçura que embala nos frascos de vidro. É isso o que faz, sentada no passeio defronte do Mercado Sucupira, pelo menos desde que desistiu de escrever poemas.
(…)
E um dia, mais do que gabar-lhe a composição e afagar-lhe a carapinha, a professora disse:
— Um dia ainda vais ser poeta, Anita.
E Anita conseguiu imaginar que era poeta, que escrevia livros iguais aos que gostava de ler à noite, quando a luz faltava na Praia e a cidade voltava a ser um sítio apenas iluminado por candeias e velas. Cresceu, por isso, julgando que, um dia, escreveria poemas e frases bonitas sobre a sua ilha e que as crianças das outras partes do mundo leriam o que escrevesse e sonhariam com a baía morna onde, às vezes, a lua cheia vem namorar o mar — do mesmo modo que eu, estando longe, vejo Anita sem sequer a ver. 
(...)
Então, e por um instante, fecho os olhos, esqueço o Inverno e imagino que ainda é Verão, que a cidade lá fora é a Praia e que Anita está sentada no passeio a vender Doçura desde o dia em que soube que não seria poeta. (...) vai inventando poemas que não escreverá jamais, pois cedo a mãe lhe explicou que
 — Não é poeta quem quer, é poeta quem a vida deixa. Poesia de pobre é comida na mesa para encher barriga.
(…)
Quando aí está, esperando que os pontos luminosos da noite se ordenem e inventem mundos, Anita pensa que ainda é poeta, que são poemas as frases com que imagina príncipes crioulos e cidades imensas de vidro e aço. Sonha os livros que escreveria se não fosse menina pobre e a vida tivesse permitido que o vaticínio da velha mestra se concretizasse.
(— Um dia ainda vais ser poeta, Anita)
Às vezes, pensando nisto, Anita ainda se entristece. Olhando-a a partir da minha janela do país onde é quase sempre Inverno, vejo que as estrelas se lhe reflectem no orvalho dos olhos. Vejo isto e enterneço-me. Daqui longe fecho os meus olhos e sussurro bem baixinho a única verdade que existe — para que ela a oiça: que não há no mundo todo maior poema do que vê-la, sentada no passeio, a vender a Doçura que tem nos frascos. E nos olhos.”



A Doçura, de  Manuel Jorge Marmelo
O prazer da leitura

Edição conjunta de FNAC/Teorema publicado por ocasião do Dia Mundial do Livro

23 de Abril 2007



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