“A utopia está lá no horizonte. Aproximo-me
dois passos, ela afasta-se dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre
dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei.
A Doçura
HISTÓRIAS EM PORTUGUÊS em https://contadoresdestorias.wordpress.com/historias-2/
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Fernando Birri,
citado por Eduardo Galeano in ‘Las palabras andantes?’
de Eduardo Galeano.
publicado por Siglo XXI, 1994.
A Doçura
(excerto)
“Anita vende a
doçura em frascos. Enche-os de compota de fruta, tapa-os e cola-lhes uma
etiqueta, mas, em vez de escrever compota disto ou compota daquilo, de mirtilos
ou de pêssego, de marmelo ou de morango, arredonda a letra e escreve apenas Doçura. Senta-se no passeio com os frascos defronte,
expostos no asfalto, junto aos pés, e não lhe faltam clientes. A compota
vende-se muito bem e ninguém regressa para reclamar: quem compra julga que a
doçura está toda nos olhos de Anita.
Anita vende,
pois, a doçura que tem no olhar e a doçura que embala nos frascos de vidro. É
isso o que faz, sentada no passeio defronte do Mercado Sucupira, pelo menos
desde que desistiu de escrever poemas.
(…)
E um dia, mais
do que gabar-lhe a composição e afagar-lhe a carapinha, a professora disse:
— Um dia ainda
vais ser poeta, Anita.
E Anita
conseguiu imaginar que era poeta, que escrevia livros iguais aos que gostava de
ler à noite, quando a luz faltava na Praia e a cidade voltava a ser um sítio
apenas iluminado por candeias e velas. Cresceu, por isso, julgando que, um dia,
escreveria poemas e frases bonitas sobre a sua ilha e que as crianças das
outras partes do mundo leriam o que escrevesse e sonhariam com a baía morna
onde, às vezes, a lua cheia vem namorar o mar — do mesmo modo que eu, estando
longe, vejo Anita sem sequer a ver.
(...)
Então, e por um
instante, fecho os olhos, esqueço o Inverno e imagino que ainda é Verão, que a
cidade lá fora é a Praia e que Anita está sentada no passeio a vender Doçura desde o dia em que soube que não seria
poeta. (...) vai
inventando poemas que não escreverá jamais, pois cedo a mãe lhe explicou que
— Não é
poeta quem quer, é poeta quem a vida deixa. Poesia de pobre é comida na mesa
para encher barriga.
(…)
Quando aí está, esperando que os pontos luminosos da noite se ordenem e
inventem mundos, Anita pensa que ainda é poeta, que são poemas as frases com
que imagina príncipes crioulos e cidades imensas de vidro e aço. Sonha os
livros que escreveria se não fosse menina pobre e a vida tivesse permitido que
o vaticínio da velha mestra se concretizasse.
(— Um dia ainda vais ser poeta, Anita)
Às vezes, pensando nisto, Anita ainda se entristece. Olhando-a a partir da
minha janela do país onde é quase sempre Inverno, vejo que as estrelas se lhe
reflectem no orvalho dos olhos. Vejo isto e enterneço-me. Daqui longe fecho os
meus olhos e sussurro bem baixinho a única verdade que existe — para que ela a
oiça: que não há no mundo todo maior poema do que vê-la, sentada no passeio, a
vender a Doçura que
tem nos frascos. E nos olhos.”
O
prazer da leitura
Edição
conjunta de FNAC/Teorema publicado por ocasião do Dia Mundial do Livro
23 de Abril 2007