quarta-feira, outubro 06, 2021

MIBE 2021 "Contos de Fadas e Contos tradicionais de todo o mundo"


                                 
                                                                                                   Prémio Nobel da Literatura 1998


Um Azul para Marte 


"A noite passada fiz uma viagem a Marte. 
Passei lá dez anos (se a noite dura nos pólos seis meses, não sei por que não hão-de caber dez anos numa noite marciana ) e tomei muitas notas a respeito da vida que lá se faz. […] 
Em Marte, por exemplo, cada marciano é responsável por todos os marcianos. Não tenho a certeza de ter compreendido bem o que isto quer dizer, mas enquanto lá estive (e foram dez anos, repito), nunca vi um marciano encolher os ombros. (Devo esclarecer que os marcianos não têm ombros, mas o leitor está certamente a perceber a minha ideia.). Outra coisa que me agradou em Marte, é que não há guerras. Nunca houve. Não sei como se arranjam nem eles souberam explicar-mo, talvez porque eu não tenha sido capaz de lhes dizer o que é uma guerra, segundo os padrões terrestres. […] 
Em Marte gostaram muito de saber que há na Terra sete cores fundamentais de que se podem tirar milhares de tonalidades. Lá só há duas, branco e preto (com todas as gradações intermédias), e eles sempre suspeitaram que haveria mais. Garantiram-me que era a única coisa que lhes faltava para serem completamente felizes. E embora me tivessem feito jurar que não falaria do que por lá vi, desconfio bem que estarão dispostos a trocar todos os segredos de Marte pelo processo de obter um azul. 
Quando saí de Marte ninguém veio acompanhar-me à porta. Acho que no fundo não nos dão grande atenção. Vêem-nos de longe o planeta, mas estão muito ocupados com os seus próprios assuntos. 
Disseram-me que só começarão a pensar em viagens espaciais depois de conhecerem todas as cores. 
É estranho, não é? Por mim, nesta altura, estou hesitante. Posso levar-lhes um bocado de azul (nesga de céu ou toalha de mar), mas depois? Eles virão certamente por aí abaixo, e eu tenho a impressão de que não vão gostar."

 José Saramago, Deste Mundo e do Outro, 4.ª edição, Lisboa, Caminho, 1997

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